- Os Desafios da
Leitura em Tempos Virtuais: Som e Imagem
-
- Joana Belarmino de
Sousa -
Jornalista e professora do
- Curso de Comunicação Social
da UFPb.
-
- Falar acerca dos desafios da
leitura na era do virtual, implica numa
- compreensão do ato de ler
que envolva a cultura, as diversas formas de
- apreensão da realidade, a
qual possa extrapolar as formas tradicionais de
- leitura e o que chamaríamos
de formas contemporâneas de teleleituras.
- Nesse sentido diremos que
"ler o mundo" nunca foi uma tarefa fácil. Com
- todo o caráter de
arbitrariedade que possui a palavra
"evolução", quando
- observamos a história do
desenvolvimento das culturas humanas, vemos as
- marcas de uma progressiva
evolução dos dispositivos utilizados pelas
- diversas sociedades no seu
ato de "ler o mundo"; se quisermos, em vez de
- "evolução",
falaremos de ciclos revolucionários que ao longo da
história
- dessas sociedades tiveram
impactos profundos em suas culturas.
- Três desses ciclos têm
fundamental importância para a formação das
- chamadas culturas letradas:
Falamos da revolução neolítica e do modo
- como aquelas sociedades
eminentemente agrícolas extraíram da própria
- terra e dos seus instrumentos
de trabalho, os rudimentos da escrita
- manuscrita; o segundo ciclo
data do século XV, a partir do advento da
- imprensa de Gutemberg e da
consolidação da era da escrita mecanizada; a
- contemporaneidade,
classificada como a "era informática" amplia e
- diversifica as formas de
leitura e escrita. Instaura uma multiplicidade
- de interfaces com as quais o
homem intervém, apreende e transforma a
- cultura, cria o espaço-tempo
mutável, fragmentado, marcado por uma
- espécie de
"presentificação permanente" do real.
- É nesse contexto que emergem
temáticas para o debate teórico como a que
- nos ocupamos agora, ou seja,
pensar sobre quais são os desafios para a
- leitura no mundo virtual;
quais são os reais impactos das tecnologias
- de armazenamento e
distribuição da informação na cultura contemporânea;
- Obviamente essas questões
não são novas e têm suscitado, ao longo das
- últimas décadas, uma série
de formulações. Poderíamos situar esse debate
- em torno de duas vertentes: A
dos antitécnicos ou "apocalípticos" e
- aquela que Umberto Eco
classificou de "integrados"; poderíamos falar
- ainda de uma "terceira
via" (a expressão nada tem a ver com as propostas
de
- alguns políticos
contemporâneos para suplantar o capitalismo e o
- socialismo), Falamos das
abordagens que tentam compreender as novas
- tecnologias de informação e
o seu impacto na cultura numa perspectiva
- que incorpore técnicas e
homens como colaboradores permanentes e que
- abarque não apenas as
vantagens e/ou desvantagens desse novo campo, mas
- que trabalhe os conflitos e
tensões surgidas com vistas à busca de
- soluções. Nas idéias de
Piérre Levy, encontramos uma das contribuições
- mais importantes para essa
vertente do debate teórico na atualidade.
- Parece-nos que os chamados
"antitécnicos", representados hoje por
- teóricos como Jean
Boudrilaire e Pau Virilius, produziram um divórcio
- inconciliável entre homem e
técnica, entre culturas tradicionais e
- cultura da informática. Por
certo as elaborações da ficção científica
- salpicaram também no seio do
debate teórico que engendrou visões míticas acerca das
- novas tecnologias, percebendo
essa realidade tecnológica como "o
- grande mau".
- Os novos dispositivos
técnicos, segundo tais visões, possuem um caráter
- implosivo, destruidor das
práticas tradicionais da cultura; preconizam o
- fim de modelos tradicionais
de comunicação e informação, tais como o
- jornal impresso e o livro.
- Tais abordagens não nos
levam muito além da superfície dessa complexa
- discussão e nos impedem de
pensar a
- técnica como esse campo de
possibilidades múltiplas em que homens e
- dispositivos estão em
permanente colaboração. Tais abordagens Confinam
- numa visão limitada, os
reais
- conflitos e tensões desse
campo, bem como o seu aspecto de realidade
- ora complementar, ora
determinante para a melhoria da qualidade das
- formas tradicionais de
leitura e de apreensão da realidade.
- Para forjarmos uma
compreensão mais adequada acerca da chamada era
- tecnológica e dos seus reais
impactos nas interfaces de leitura e
- escrita, enfim, dos processos
de produção de informação e de
- comunicação, há que se
recompor e reconectar os fios da história deses
- aspectos das culturas
humanas; ao mesmo tempo é necessário que se
- proceda à uma espécie de
descontaminação do conceito de "virtual" das
- conotações de ilusório e
falso, consequentemente, irreal.
- Se pensarmos na
virtualização não como algo irreal, inexistente, mas
- antes como uma
"potencial atualização" da realidade humana,
- transformando-a num
"devir possível", então teremos que em todas
as
- culturas, as sociedades
vivenciaram processos de "virtualização" da
- realidade, na medida em que
atualizaram formas tradicionais de
- percepção, atribuição de
sentidos, leituras do mundo à sua volta. Para
- citar Pierre Lévy, diríamos
que "a digitalizaão e as novas
- formas de apresentaão
do texto s¢ nos interessam porque dão
- acesso a outras maneiras de
ler e de compreender".
- Então, se aceitarmos que o
"virtual" é esse campo de tensões,
- indeterminações onde se
processam as atualizações do real, compreendendo
- ainda esse campo como um
complexo processo de interrelações entre
- indivíduos e dispositivos
técnicos tendo como componente indispensável a
- têia de significados que
cada agente é capaz de forjar, diremos que os
- três ciclos revolucionários
da cultura humana citados a pouco encerram
- em si mesmos processos de
"virtualização".
-
- Ao firmarem no cálamo ou na
tábula de argila, os pilares da escrita
- manuscrita, os povos
fenícios e mesopotâmicos gestavam também uma
- "atualização" das
suas formas tradicionais de leitura e apreensão da
- realidade. Instauravam formas
novas de significação do mundo,
- abriam as trilhas para a
interpretação hermenêutica, para a crítica,
- para a organização do
estado e da ciência moderna. criavam a
- possibilidade de um
'emissor" da comunicação "virtual",
porque abstrato,
- diverso do emissor da
comunicação interpessoal face a face.
- A escrita mecanizada era uma
"virtualização", no seu vigor de atualizar
- as formas tradicionais de
acesso à leitura e à escrita, retirando das
- mãos dos escribas o processo
de duplicação das obras escritas,
- propiciando facilidade e
democratização do acesso ao texto.
- E eis que vivenciamos na era
digital, uma nova "atualização das formas
- tradicionais de leitura e
escrita. É nesse contexto em que se ampliam
- as formas de acesso ao texto,
as possibilidades de "ser" desse texto,
- que melhor se adequa o termo
"revolução".Os protagonistas dessa nova
- viragem no processo
desenvolvimentista ainda são os mesmos da era
- manuscrita: homens,
dispositivos técnicos, aliados a um ingrediente
- fundamental: o imparável
processo de significação e ressignificação da
- realidade.
- Como é o texto virtual? onde
podemos encontrá-lo? como podemos lê-lo?
- Pensar sobre as
características dessa nova forma de produção da
- informação escrita nos
obriga a remontar aos primórdios da era da
- escrita e ao esforço das
culturas no sentido de "animar" suas sessões
de
- leitura, aliando esse
processo à uma espécie de "fala" do texto.
Por
- muito tempo as produções
escritas das culturas antigas, mesmo a quelas
- voltadas ao conhecimento
científico eram uma espécie de 'recorrência à
- comunicação oral, visto que
o conhecimento era transmitido através de
- diálogos. Nos debates, nas
solenidades culturais, privilegiava-se a
- leitura em voz alta, numa
perspectiva de "animação do texto escrito, que
- somente pela via da fala
encontra o verdadeiro sentido de suas
- pontuações, das suas
pausas.
- O texto digital em nada se
assemelha ao antigo códex, nem tem a
- estrutura física do livro
impresso. Impaalpável, imaterial,
- deslocalizado, dentro dos
dispositivos de armazenamento não passa de um
- amontoado de sinais e
códigos incompreensiveeis, à espera dos suportes
- técnicos e dos indivíduos
que o "realizarão" em sua essência, que o
- "animarão",
escurecendo ou clareando suas zonas de sentido,
recortando
- pequenas fatias para
colá-las a outrtos documentos ou a estrias de
- sentidos outros; O texto
virtual é assim uma imensa têia de
- possibilidades, dependentes
unicamente dos interesses e usos
- particulares de cada
indivíduo. De novo se estabelece o espaço para a
- leitura coletiva;
dispositivos técnicos emprestam à palavra escrita o
- som da fala. Configura-se
assim, a síntese complexa e complementar entre
- as múltiplas formas de
comunicação. A oralidade reencontra novo lugar
- dentro de uma resolução
técnica; duplicam-se as possibilidades de
- reprodução do texto
impresso em papel; diante da tela, o leitor do
- texto digital sobrevoa por
entre cascatas de sentidos, restabelece fios
- e conexões entre nós e nós
de significação,
- cria ele próprio suas vias
de tráfego por essa imensa rodovia
- sibernética que não para
nunca de crescer. Lembro-me de haver lido uma
- vez, a história de um homem
que levou a vida a construir sua casa, a
- desfazer quartos que não lhe
agradavam, a remontá-los depois sob outra
- ótica; parece ser assim na
era informática, cada indivíduo a escolher e
- estabelecer suas vias de
tráfego, a desfazer redes antigas e refazer
- novos caminhos,
bifurcações, lugares remotos de onde transporta pacotes
- e mais pacotes de
informação.
- Mas não é somente a
comunicação oral que aparece revalorizada na era
- informática. O texto
escrito, com os dispositivos técnicos de impressão,
- ganhou em quantidade e em
qualidade gráfica. Nunca se publicou tanto no
- mundo como nas últimas
décadas. A realidade cotidiana tem posto por
- terra as visões alarmistas
que a cada invento preconizaram o fim de uma
- modalidade anterior de
informação e de comunicação.
-
- Mas não basta salientar
unicamente as facilidades e as beneces desse
- novo campo tecnológico, sob
o risco de cairmos naquela visão de que os
- dispositivos de informática
são a panacéia para todos os problemas do
- homem conteporâneo. O
processo de informatização de quase todas as
- esferas da sociedade, ainda
que recentíssimo,
- envolve também uma série de
conflitos e tensões, exibe uma flagrante
- desigualdade entre os que já
acumularam um imenso capital cultural e
- aqueles que estão
completamente à margem desse processo. Poderíamos
- fazer um confronto, ainda que
grosseiro, entre o tempo da escrita
- manuscrita, quando apenas uma
pequena casta privilegiada tinha acesso a
- esse saber e a era da
informática, onde grandes bolsões de populações do
- mundo se quer alcançaram a
alfabetização tradicional e portanto não
- usufruem da nova riqueza das
sociedades civilizadas, ou seja, a
- informação e suas imensas
redes de distribuição.
- Julgamos ser esse um dos
grandes desafios da era informática: romper as
- fronteiras, materializar o
que Pierre Lévy chama de "sóciodemocracia",
- para caracterizar uma
situação em que o saber sobre as novas técnicas,
- assim como o seu usufruto
sejam socializados entre todos. Obviamente que
- isso exige vontade política
dos governantes e das instituições
- organizadas da sociedade
civil; Conflitos outros transbordam desse
- campo, que se modifica e se
"atualiza" quase que instantaneamente e que
- impõe ao debate teórico, a
necessidade premente de também estar a se
- renovar, a se atualizar.
- As novas tecnologias
inauguram formas novas de se fazer ciência;
- instauram o conhecimento por
simulação, abrindo assim um campo tão vasto
- de possibilidades de acesso e
de manipulação do conhecimento que de novo
- as sociedades se vêem
compelidas a rediscutir seus preceitos de ética e
- de moral suas práticas de
convivialidade, sua nova forma de
- sociabilidade.
-
- Recentemente, li uma obra de
um biólogo norteamericano intitulada "A
- Caixa Preta de Darwin".
No livro, Edward Behe faz uma revisão crítica da
- teoria da evolução das
espécies. Recorre frequentemente à metáfora da
- caixa preta, para demonstrar
que o percurso do conhecimento científico
- está cheio de enigmas,
desafios a serem deslindados. A seu ver, a cada
- resposta encontrada pela
ciência, uma série de outras questões
- indecifráveis se colocam
para o debate, como espécies de "caixas
pretas"
- a serem abertas. Penso ser
também assim com a era informática. a
- mutabilidade e
indeterminação do campo, as frequentes atualizações,
nos
- levam a pensar que o
fenômeno tecnológico ainda é uma enorme caixa preta
- que vamos abrindo aos poucus,
como se fôra esta um imenso livro, a exigir
- a técnica e a maestria dos
modernos presdigitadores, para a
- decodificação dos seus
sinais. Haverá um dia em que um novo invento
- acordará os defensores
apocalípticos do fim do livro digital?
- João Pessoa - 24 de Abril de
1999.
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